sábado, 19 de dezembro de 2009
Do Piauí ao Planalto
Da rua Betoven, numa favela da periferia de Teresina, para um gabinete da Presidência, em Brasília - e vice-versa
CAROL PIRES
Fazia calor no casebre de taipa na rua Betoven, na Vila Irmã Dulce, em Teresina, no Piauí. A Vila é a segunda maior favela da América Latina cuja origem é uma invasão, e lá apenas 8% dos moradores dispõem de água encanada. Francisca Edna dos Santos Feitosa levantou da rede onde dormia, pegou uma caneta vermelha e foi para o fundo do terreno, onde jazia um ipê apodrecido. Edna, como é chamada pelos familiares e vizinhos, botou a data de 10 de janeiro de 2003 no alto da página, apesar de ainda ser dia 9. Com uma caligrafia insegura, e o português de quem estudou até a 5ª série, preencheu a frente e o verso da folha que arrancara do caderno da filha mais velha:
Saudações
Senhor presidente Luiz Inacio Lula da Silva eu estou lhe escrevendo esta carta para conta a minha real situação eu estou passando, Olha senhor presidente eu tenho uma familia muito grande trabalha alguns nas terras aleia mais agora eles tem que sair por que meu pai esta doente e não pode mais trabalha, eu tambem tenho dois irmão que já são casado e também não tem condições para sobreviver trabalha nas terras aleia no interior distante da qui em cana brava um interior de Buriti Bravo maranhão o sonho deles é vir mora aqui comigo para cuida da sua saúde ele tem colesterio e presão muito alta tem dias que agenda olha pra ele ver que ele esta bom derepente ele comesa ficar todo incricriado echorando falando que vai morer e não vai mais ver nos que moramos aqui eu minhas irmãs quemora aqui nós somos 5 irmãos e meus 2 filhos e o meu marido ele já é bem velho, nos vivemos como apenas um salário e, é por que ele é aposentado por idade nos moramos noma casa pequena sem muito espaso e também tem do lado da minha casa os terreno do meu pai e do meus 2 irmãos mais senhor presidente eu estou comedo de me tomaram por que eu ainda não pude fazer nada e nem eles também , senhor presidente eu estou passando fome eu tenho um butijão já esta com 6 meses que eu não troco ele por que não posso eu estou cosinhando na lenha catando ponta de pau para bota no fogo o meu filho quase more no inicio por que não tinha costume, senhor presidente eu lhe pesso que você tenha pena da minha situação e da minha familia nos queremos uma moradia digina e não podemos senhor presidente eu estou estudando a noite este anos eu vou fazer a 7ª. Serie e gostaria de trabalha para sustenta os meus filhos e gostaria de um emprego para minha irmãs eu lhe pesso um trabalho que eu possa trabalha com dignidade eu amo a responsabilidade.
Senhor presidente eu lhe ploro não deixe mengem toma o pouco que eu a minha familia temos estes terrenos muito obrigado ass: sua fã numero 1. Fca Edna dos Santos Feitosa te amo meu presidente de coração.
O terreno da casa, na periferia ao sul de Teresina, fora comprado pelo pai de Edna com a venda de três porcos e algumas galinhas. Ela morava ali com os dois filhos, o marido Jaime, quatro irmãs mais novas e Samara, uma vizinha acolhida num sufoco: ela havia sido expulsa de casa pelo marido numa noite de chuva, 28 dias depois do nascimento da sua filha.
O mobiliário da casa consistia em dois sofás velhos, dados por uma antiga patroa de Edna, onde dormiam as crianças. Os adultos dormiam em redes penduradas nas paredes vacilantes. A luz puxada da rua não tinha força para ligar o ventilador, que servia para atenuar o calor e espantar insetos. Raimunda, uma das irmãs de Edna, tinha vergonha de ir à escola, tantas eram as marcas de picada de mosquito nos braços e no rosto.
Edna não botou a carta no correio. Dobrou a folha e a guardou num envelope branco.
A 1 800 quilômetros dali, em Brasília, o presidente recém-empossado se preparava para sair na primeira Caravana da Fome, uma de suas promessas de campanha, que percorreria cidades pobres do Piauí, Pernambuco e Minas Gerais. A caravana iria primeiro a Guaribas, o município mais miserável do Brasil. Mas a logística complicada - levar trinta ministros e assessores de avião e helicóptero para o local - provocou uma mudança de rota. O avião presidencial pousou em Teresina e a comitiva dividiu-se em três micro-ônibus, que tomaram o rumo da Vila Irmã Dulce.
Dos ministros anunciados, faltou apenas o dos Transportes, Anderson Adauto (hoje réu por lavagem de dinheiro e corrupção no processo do mensalão), e Tarso Genro. Como era o acontecimento do ano na cidade, Edna não poderia deixar de ir. Sem avisar, não foi à barraca de feira onde fazia um bico.
Lula caminhou meio quilômetro por ruas de barro vermelho antes de subir no palanque, de onde o governador Wellington Dias evocou as riquezas do Piauí, "abastado em ouro e opalas". O presidente pegou o mote e emendou: "Wellington, você disse que este é um estado rico, que tem muito ouro, diamante, que tem Opalas, Chevettes, Fuscas, tem de tudo."
Edna não pôde prestar atenção aos discursos. Estava empenhada em forçar o seu 1,48 metro através da multidão, das grades de isolamento e policiais que a separavam do homem de calça cáqui e camisa azul-clara arregaçada que discursava. Não conseguiu e se aproximou de um agente uniformizado que, imaginou, "podia ser da guarda presidencial". Puxou-o pela roupa e fez um apelo: "Pelo amor de Deus, esta carta é muito importante, você entrega na mão do Lula porque ele precisa receber isto. É questão de vida ou morte."
A reportagem na íntegra você lê no site da revista piauí, aqui. Reportagem publicada na edição de dezembro.
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